Crônicas, contos e narrativas do passado, de gente que vive na ilha do Pico, ou estão espalhadas pelo mundo e tem muitas estórias para contar. Mande seu conto.

terça-feira, 30 de março de 2010

Um emigrante do Pico

Autor: Francisco Medeiros
O Pico amanheceu descoberto, algumas nuvens dispersas, aqui e além, de vez em quando passam-lhe na frente, mas logo volta a aparecer na sua plenitude. E é lindo este Pico, com algumas manchas de tons verdes e pedra, realçadas pelo Sol, que vai subindo no horizonte para os lados do Topo em São Jorge, pondo no mar reflexos de , para além da cidade, avista-se nitidamente o casario disperso por entre tons verdes coroados pela sua Caldeira.
No canal, para os lados do Calhau, Areia Larga e Madalena, avistam-se as velas brancas dos Barcos do Pico, que se vão afastando da costa em, demanda do porto da Horta. Vão carregados de lenha, vinhos e frutas.
Um rasto de espuma branca vai formando uma esteira, no entre o Pico e o Faial, denuncia a primeira lancha dos Lourenços, a lancha da fruta, a caminho do Porto da Madalena.
Próximo da costa Norte do Pico, à saída do canal Pico/ S. Jorge, um grande navio, todo branco, navega para o Ocidente. Vai-se aproximado rapidamente da costa Norte do Faial, para os lados da do farol da Ribeirinha.
Estamos no mês de Julho, as labutas daqueles que trabalham a terra são muitas.
Tudo se conjuga para mais um dia de trabalho de Sol a Sol nas vinhas ou nas culturas. Os que tem vacas nas “criações” vem da ordenha de “canecas” às costas, cheias de leite, para alimentação ou fabrico do queijo caseiro. Para estes, o dia começou ainda antes do Sol nascer. Percorrem os caminhos dos matos riscados com os trilhos do carros de bois.
No cabeço de cima, o António, com uma “vimadeira” numa mão e uma luva de pele de porco na outra, vai mondando o silvado entre as pedras da vinha, o suor a escorrer-lhe por baixo do chapéu de palha. Levanta-se, limpa o suor que lhe tapa os olhos com um trapo, espécie de lenço, feito de uma camisa velha. O olhar espraia-se por toda esta paisagem, mas os seu olhos fixam-se exclusivamente naquele navio todo branco, que se vai perdendo no horizonte a caminho da América.
Levantara-se de madrugada. Sempre os mesmos trabalhos, repetitivos e divididos ao longo do ano, conforme a época das sementeiras e das colheitas, complementados com uns dias que dá p’ra fora em troca com os vizinhos.
De uma família com mais cinco irmãos, três rapazes e duas raparigas, todos ajudam nos trabalhos da lavoura, no amanho das terras, com excepção de um dos irmãos, que por deficiência de um pé, dedica-se à profissão de sapateiro.
O dinheiro que entra naquela casa é para satisfazer o mínimo das necessidades indispensáveis: É o boi que se exporta todos os anos, algum dia dado p’ra fora pago a dinheiro por algum agricultor mais abastado, o vinho e a lenha vendidos para o Faial aos fregueses apalavrados.
O António sonha com uma vida melhor. Aquele navio todo branco associa-o às conversas de quase todos os dias, que ouve na casa de ensaio da música, ou no botequim do José Nunes, onde à noite se desloca para saber de algumas novidade ou discutir as colheitas que se fazem, os preços do leite ou do gado, acompanhados de um jogo de “Sueca”.
É assim a rotina de quase todos os dias.
A América não lhe sai do pensamento, as histórias que ouve, as sacas de roupa que os vizinhos recebem, vindas da América, de parentes emigrados, alguns de “salto” nas Baleeiras. Todos os dias, estas histórias martelam-lhe a cabeça.
Há dias, ao falar com um vizinho, que também vai emigrar, ouviu falar sobre os navios da “Fabre Line”, que fazem escala na Ilha do Faial para Providence, de que é agente José Furtado Cardoso, este trata de todos os documentos, incluindo passagens em caminho-de-ferro para a Califórnia. Quase todos os dias comenta-se que um ou outro conhecido está a tratar de documentos para emigrar, com cartas de chamada de familiares. A América é o sonho de uma vida melhor, para muitos jovens da Ilha.
Um dia ao chegar a casa disse ao pai que queria emigrar, mas para isso teriam que pedir dinheiro emprestado, ou vender um dos bois que estavam no mato. Naquela noite ninguém dormiu naquela casa, só a pensar que o António os ia deixar por muitos anos. Foi como se tivesse morrido um familiar. A mãe andava de lagrimas nos olhos pelos cantos da casa, sem que ninguém a visse. Era um dos seus filhos que os ia deixar.
Nos dias seguintes começaram os preparativos, colher informações mais precisas sobre passagens e o recurso a um vizinho mais abastado para emprestar o dinheiro. Parecia que aquela casa tinha levado uma volta.
E chegou o dia, uma manhã de Primavera. Com uma mala de madeira, três mudas de roupa, calçado com umas botas novas feitas pelo irmão sapateiro, lá seguiu para o Faial no barco “Adamastor”, acompanha-o um vizinho, com quem já vinha falando há muito e que agora também partia. Embarcou nas vésperas das Festas do Espirito Santo, junto com outros dois rapazes do Pico, rumo à América.
O António à poupa do navio, à saída do Cais, olhava para o Pico, a freguesia e a Igreja de Santa Maria Madalena por entre os Ilhéus, invadido já pelas saudades, uma lágrima rebelde corria-lhe pela cara. Veio-lhe à memória todo o tempo passado na Ilha, revendo o passado, mas também a esperança de melhores dias para o futuro iam-lhe reconfortando a alma.
- Um dia, quando eu voltar, vou acompanhar Santa Maria Madalena na procissão, descalço, em todo o percurso.
- Se chegar a juntar algum dinheiro, vou lavar a Coroa do Senhor Espirito Santo e convidar para a minha mesa todos os pobres nossos vizinhos e amigos.
À medida que o navio se afastava, a Ilha ia-se tornando mais pequena, por momentos pensou que se estivesse no Pico já não embarcava, mas a decisão estava tomada e o navio já não voltava p’ra trás.
Já noite alta, deixou de avistar o farol dos Capelinhos na Ilha do Faial. Foi à procura do camarote, que o acolheu até à sua chegada a terras da América.
Email do autor: Francisco Medeiros

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segunda-feira, 1 de março de 2010

Eu sacristão.


Autor: David Avelar
Na década de sessenta do século passado com 10 anos de idade, por influência do padre Rodrigues, comecei a ajudar à missa, na igreja São Pedro Alcântara. Desde a época de catecismo que eu tinha verdadeira adoração pelos rituais da igreja. Os odores, os cânticos, o eco proveniente deles, os paramentos, tudo me atraía. Com facilidade aprendi os rituais litúrgicos. Responder à missa em latim, para mim, criança, era como falar a língua de Deus. Todos os dias, às seis da manhã, ou à noite às seis horas, ou às novenas, ao anoitecer o ângelus, acompanhava a perpétua, fazendo o trajeto da casa de meu avô, à igreja passando por minha escola, pelo hospital descendo a ladeira, desemboca no adro do majestoso edifício do Convento Franciscano, com a sua majestosa igreja anexa. Ali, na fria sacristia, preparava-me para abotoar umas três dezenas de botões, que compunham a minha batina sacristão. Depois preparava a água e o vinho, que iriam fazer parte da eucaristia. Em seguida me dirigia ao altar-mor, onde acendia as velas. Em dias de festa, a sala à direita, se transformava numa imensa floricultura, onde a Maria Fernandina, preparava com carinho, os arranjos de flores que iriam decorar os altares. Essa sala, dava para um pequeno cemitério clerical. A essas horas, o padre Rodrigues já se encontrava também nos preparativos para a a celebração da missa. Eu caminhava para a torre para tocar os sinos, com o toque das missas vespertinas. Haviam diversos dobrados, um para cada cerimônia. Casamentos, batizados, funerais, ângelus. Vinte e cinco toques de sino.
Em 1992, quando retornei a minha terra, com minha esposa, visitei a igreja com a avó Matilde e encontrei uma velha amiga de infância, Dolores Xareta. Quando voltei em 2004, vi que o altar da direita já tinha sido reformado, mas que a igreja ainda continuava no mesmo estado de abandono. O Convento na verdade fazia parte de um complexo, que por muitos anos foram instalados a Câmara, o Tribunal da Comarca da Ilha do Pico, as repartições de Finanças, a tesouraria da Fazenda Pública e a Conservatória do Registro civil e predial. Há que se fazer aqui, uma observação. No lugar chamado Cais do Pico, para mim um dos mais lindos da ilha do Pico, lugar onde nasci, é que se situam, até hoje, todos órgãos administrativos, do Concelho da Freguesia. Na verdade, São Roque é uma vila a mais ou menos uns 5 kms de distância. Ali situa-se a sede paroquial da freguesia. Um dos mais iminentes párocos, foi o padre Soares, do qual eu tinha muito medo. O padre Rodrigues, era uma pessoa muito especial, gostava de tomar seu vinho, fumar seu cigarrito. Sua marca favorita era gauleses, um cigarro francês, muito forte. Costumava sentar na varanda da casa de minha mãe alugada à paróquia, e ficar vendo-me brincar no quintal. Muitas vezes, ante a minha curiosidade sobre assuntos bíblicos, respondia de uma forma didática e de fácil entendimento, o que me levou a amar história e por conseguinte a Bíblia. Já no Brasil, soube que veio para cá, como missionário, morando em Santos-SP. Anos depois, faleceu de malária no Centro-Oeste do Brasil. Foi com imensa alegria e emoção que ao retornar em 2004, pude observar que a fotografia dele, se encontrava na entrada da sacristia, como uma homenagem póstuma, àquele que sem dúvida nenhuma, foi o melhor padre da nossa igreja.
Uma vez para sair da rotina enfadonha das manhãs das missas vespertinas em vez de colocar água e vinho, nas galhetas, para eucaristia coloquei água e água. No meio da consagração ao perceber a brincadeira, fitou-me com olhar maroto. No edifico do Convento no Inverno, funcionava o cinema-teatro, num salão do rés-do-chão e a cadeia da Comarca, que de vez em quando abrigava incauto, preso na maioria das vezes por ter tomado um copo a mais.
Mas uma das minhas grandes aventuras da igreja, foi quando perto da Semana Santa, ao retirar os panos para cobrir as estátuas e as janelas descobri atrás do altar-mor, uma porta que dava para uma caverna. Atrevi-me a descer os degraus de pedra, mas ao ver o primeiro esboço de uma caveira, voltei correndo e fui contar para padre Rodrigues. Ele com cenho franzido ralhou comigo e me pediu para esquecer o que eu tinha visto. Anos depois conversando com o meu avô, ele me contou que, provavelmente, o que eu tinha descoberto era real, pois numa só noite, 3 de Setembro de 1759, quando o Marquês de Pombal expulsou jesuítas, os monges que ali viviam sumiram, provavelmente tendo acesso ao mar por essa caverna. Em 1992 conversei o meu primo Norberto Medeiros que vivia da pesca lagostas e cavacos, de mergulho e que também confirmou que já tinha tido acesso a essa caverna, na maré baixa. Se é verdade ou não, isso ficou na minha memória de criança, como um fato inusitado. Outra lenda e essa sim, é uma lenda, é que os monges tinham um tesouro guardado num dos pilares das escadas de acesso, ao segundo andar do monastério, onde havia realmente um bojo da sua base, mas se alguém tentasse quebrar aquele pilar, toda a arcada de pedra de acesso ao claustro, ruiria. No centro do adro, ainda se encontra a cruz de pedra, onde tantas vezes eu brinquei. Eu roubava as hóstias e celebrava missas de mentirinha, ali em frente àquela cruz. Espero ainda ver um dia a minha igreja. O mais engraçado, é que mesmo com toda a riqueza de ouro, prata, marfim e ícones religiosos, a igreja estava sempre aberta. Os trabalhos de entalhe em madeira de lei brasileira, feitos a canivete segundo consta, destacando-se principalmente as gavetas da sacristia onde se guardavam os paramentos. O Ostensório e o Turíbulo de prata, a magnífica Cruz Processional. Recordo-me da preocupação em manter a lamparina vermelha, situada ao centro da nave principal em frente o altar-mor, sempre acesa. Uma bóia de cortiça flutuando sobre azeite, fazia com que o pavio se mantivesse à distância certa do azeite e queimasse eternamente. Este conto também é uma homenagem póstuma, àquele que foi meu mentor espiritual. Padre Rodrigues. Tal foi sua influência, que vim para o Brasil aos 13 anos, com a intenção de seguir a carreira eclesiástica. Ainda freqüentei o Seminário São Vicente de Paula, em Petrópolis. Mas ao ver o sincretismo religioso e as lindas mulheres deste país, cheguei à conclusão que, certamente, seria um péssimo padre. Aqui constituí uma família linda. Hoje tenho uma amada esposa, com quem vivo há 33 anos, sou pai de duas filhas maravilhosas e tenho uma neta que é minha princesa. Dádivas de Deus.
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