Crônicas, contos e narrativas do passado, de gente que vive na ilha do Pico, ou estão espalhadas pelo mundo e tem muitas estórias para contar. Mande seu conto.

terça-feira, 22 de junho de 2010

MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS DA ILHA DO CORVO

Autor: Francisco Medeiros
Vista de longe a Ilha do Corvo parece uma grande baleia morta a flutuar sobre o mar. Os Navios da Empresa Insulana de Navegação que faziam regularmente escala naquela ilha ao aproximarem-se, avistavam por estibordo uma única e pequena luz a piscar, era o farol da Ponta Negra, sobranceiro ao Porto Novo, ao lado de dois moinhos de vento e próximo do portinho do boqueirão, onde desde o inicio do povoamento se processava quase todo o movimento de passageiros, carga e descarga de mercadorias. Mais distante e por bombordo avista-se o farol da Ponta do Albarnaz, o mais Ocidental de Portugal e da Europa, situada na freguesia de Ponta Delgada, na Ilha das Flores.
Na Ilha do Corvo sobressai o verde das pastagens e da vegetação, a costa é escarpada, sendo a parte mais baixa virada ao Sul, onde se situa o único núcleo populacional, que habita inúmeras habitações irregularmente implantadas. Parte das habitações, embora todas rebocadas interiormente, apresentava o exterior em pedra negra.
As ruas da Vila eram muito estreitas e irregulares, havendo zonas entre casas onde só era possível cruzarem-se duas pessoas. A rua da Matriz, a principal, destacava-se por ser a única com o piso de calhaus rolados trazidos da costa. Há 52 anos estava em construção um caminho, já com alguns quilómetros, para acesso às pastagens e ao Caldeirão. Um caminho que levou anos a concluir.
Os Corvinos viviam numa comunidade bastante solidária, de entreajuda, num respeito mútuo entre todos os seus habitantes.
Quase todas ou mesmo todas as famílias possuíam um rádio receptor alimentado a pilhas ou baterias. Neste caso as baterias eram carregadas por geradores eólicos (aerodínamos). Os Corvinos estavam bem informados de tudo o que se passava no exterior, através da rádio ou jornais e revistas que chegavam do exterior.
Os dias no Corvo eram passados sem sobressaltos, todos se conheciam e as relações eram óptimas. Para mim os dias eram passados ou na cavaqueira junto ao Império do Outeiro, onde se juntavam os mais idosos, nas mercearias ou então na pesca ou na leitura.
No arquivo da Câmara existia uma pequena biblioteca com livros fornecidos pela Junta Geral da Horta. Nos dois anos que lá estive, à excepção dos livros técnicos, todos os outros foram lidos por mim, grande parte à luz de petróleo, pois no tempo não havia electricidade.
Em 1957 até 1959, era possível, após o almoço, jogar-se um jogo de cartas ou de xadrez na Repartição de Finanças, que situava-se no largo do Outeiro, num edifício com uma só sala, com quatro secretárias. Uma para o chefe da repartição, outra para o tesoureiro, uma para um aspirante e outra para o fiscal de selo. Foi a primeira repartição do país com atendimento personalizado, não havia balcão de atendimento ao público. Passavam-se muitos dias sem que ali aparecesse qualquer contribuinte, a não ser a compra de algum selo ou papel selado de má memória.
Recordo-me que havia no Corvo um agricultor, já não me lembro o seu nome, que quando ia pagar a contribuição predial, queixava-se de que todos os anos aumentavam uns centavos. Certo dia o Professor Alfredo Lopes combinou com o Chefe de Finanças, Luís Moreira e o Tesoureiro, para que este lhe fizesse a cobrança por cerca de um terço do montante da contribuição. Dias depois lá compareceu o agricultor na repartição, com a importância que tinha pago no ano anterior. Nem o Tesoureiro, nem o chefe da Repartição de Finanças conseguiram convence-lo que a contribuição tinha baixado e não saiu da Repartição sem pagar o que estava estabelecido, com o respectivo recibo como garantia, não fosse o diabo tecê-las!
No meu primeiro ano no Corvo (1957), os jovens do sexo masculino festejavam o dia 25 de Abril com um cortejo bastante original. Ao que consta não era praticado em nenhuma outra Ilha dos Açores. Organizavam um cortejo composto por um carro de bois, em cima iam os que tinham casado naquele ano, os que iam casar puxavam o carro e os que estavam namorados iam à frente varrendo o caminho. O cortejo terminava no largo do Outeiro, onde estava uma coroa enfeitada com chifres, presa a um mastro de bandeira, que descia para coroar todos os que por ali passavam. Era um divertimento aceite por todos, se bem que alguns no dia não passavam pelo Outeiro.
Dias depois disseram-me que não me tinham convidado para ir no carro, com receio de eu não aceitar pois tinha chegado no mês anterior e casado naquele ano. Foi o último ano que se fez o cortejo, possivelmente por conselho dos mais idosos e para evitar futuras consequências menos convenientes.
Conheci no Corvo um trancador de baleias, José Inácio Rafael, que tinha uma particularidade muito estranha. Vomitava em terra antes de embarcar e no mar nunca vomitava. Quando lá estive era ele que tinha a concessão do transporte da mala do correio, de e para bordo dos navios que faziam escala regular no Corvo. O José Rafael, enquanto novo, esteve ligado a algumas peripécias, próprias dos lugares pequenos. Contou-me ele que certa tarde, quando regressava ao porto vindo da caça à baleia ao leme do bote à vela, com boa aragem e mar cavado do Sudoeste, já próximo do porto arribou o bote, este ficou no vão da vaga e quando esta rebentou alagou toda a companha ficando o bote ficou meio de água. Ficaram todos zangados com ele e como resposta o Rafael disse:
- Ó rapazes, isto não foi nada, se era como eu queria a gente tinha era revirado!
A Filarmónica do Corvo com cerca de 12 tocadores, a Lira Corvense, vivia com dificuldades financeiras. Para resolver esta situação foi resolvido ligá-la ao Núcleo Legionário que ao tempo existia no Corvo. Esta atitude mereceu a reprovação de uma parte de corvinos, entre eles o José Rafael. Este como retaliação um dia, pela noite, entrou na copeira do império do outeiro, abriu o armário onde estavam guardados os instrumentos, pegou num braçado em alguns e foi lança-los num buraco da Ponta Negra, junto à costa.
Passaram-se alguns dias sem se saber com os instrumentos tinha desaparecido.No tempo o Presidente da Câmara homem que conhecia bem e era respeitado pelos seus munícipes. Certo dia, chegado ao Outeiro onde se encontravam vários Corvinos entre os quais o José Rafael, disse que os instrumentos tinham que ser recuperados porque faziam muita falta. Fez uma pausa olhou para todos os presentes um a um e apontou o Rafael como sendo o autor da proeza.
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